Encrustada na parte sudoeste dos Dembos, onde a Floresta é muito densa
e bastante húmida, a zona do Zenza do Itombe era também um santuário da
Guerrilha de elementos da FNLA e do MPLA, que se guerreavam entre si, mas que
consideravam seu principal Inimigo o Exército Português.
Após uma primeira Operação onde a Companhia 2506, a minha Companhia, também
se incorporou com entrada pelo norte da Mata - já relatada neste Blogue com a
designação de 1ª Operação -, juntamente com outras Unidades dispersas por
aéreas mais alargadas, e na sequência de outras Operações já ocorridas no
antecedente, à nova Operação Militar foi chamado o nosso Batalhão, sendo
atribuída à minha Companhia a nomadização numa vasta área, desta vez com
entrada pelo lado sul da densa mata.
Já desde a Coutada de Mucusso, quando, principalmente de noite, se
ouvia um tiro isolado, começou a instalar-se no pessoal a ideia que o Palaio
via turras em todo o lado, e, se tiro
noturno soasse, tinha sido, com toda a certeza, o Palaio, nos seus desmandos
visionários. O Palaio não dormia em serviço e tinha revelado já grande sentido
de orientação, pois conseguiu acertar o azimute para o Aquartelamento, em
digressão sob o luar, quando outros, também perdidos, só chegaram ao outro dia
e com sol já bem alto.
Saídos do Grafanil e entrados já na mata densa, bivacámos em local
previamente determinado, junto à margem do Rio Zenza. Juntamente connosco, mas
chegada depois, instalou-se uma Bataria de Artilharia, com várias Peças de Fogo,
que, de manhãzinha, e em momento rigorosamente aprazado, começou a bombardear
áreas a norte. Mas, como a missão da nossa Companhia era fazer uma nomadização,
tentando empurrar os turras para
zonas onde se haviam já instalado, emboscadas, outras unidades militares, no
sentido de os capturar ou neutralizar, a nossa saída do improvisado aquartelamento,
para dar início à nossa tarefa de alguns dias, forçosamente teve que ocorrer
muitíssimo cedo, ainda o sol não raiava.
Ao terceiro dia, numa progressão em “bicha de pirilau”, ouve-se um
tiro: foi o Palaio - pensamento instintivo generalizado deverá ter ocorrido na
mente de todos.
Sendo eu o cerra-fila, a dado momento diz-me, numa voz baixa mas
firme, o Camarada que segue à minha frente: -“Palaio, está ali um gajo
pendurado numa árvore”. –“Onde?”, retorqui eu, no mesmo tom –“Ali, pá, naquela
árvore”, e aponta. Talvez, por se ver descoberto, o guerrilheiro,
posto-avançado do seu grupo e cuja missão era de vigia, dispara a sua arma, com
dois cartuchos, na nossa direcção, uma Caçadeira cujos estragos, em distância
curta, são muitíssimo poderosos, não só pela dispersão da carga, que abre em
feixe e atinge mais homens, como pela potência do impacto num único alvo. Só
que, como o Palaio nunca dormiu em serviço, foi também rápido e, conservando eu
a arma permanentemente em posição de fogo, foi só direcionar instintivamente a
minha G-3, apertar o gatilho num único tiro e … o homem cai da árvore,
seriamente ferido, largando a Caçadeira. Logrou-se, pois, a sua eventual, mas
quase certa, pretensão de disparar sobre os últimos homens da Coluna, para
depois fugir de imediato. A Coluna estancou imediatamente e, na salvaguarda de
emboscada reactiva por parte deles, posiciona-se subitamente na adequada
formação de combate. Momentos expectantes, mas rapidamente se concluiu que,
pelo menos aparentemente, mais nenhum guerrilheiro se encontraria activo nas
redondezas próximas ou disponível para combater. Levanto-me e constato que
estou ligeiramente ferido com estilhaços nas pernas, sem gravidade, e o
Camarada da frente com leves estilhaços no peito, nada de grave também.
Verificou-se que o guerrilheiro se encontra ferido no abdómen com alguma
gravidade, mas não em situação de emergência. Prontamente socorrido pelo Enfermeiro
da Coluna, fica, passados uns bons minutos, em condições físicas de andar pelo
seu pé, embora dum modo dificultoso. Recusou-se a falar fosse o que fosse,
demostrou não ter qualquer medo e olhava-nos com algum desdém, revelando grande
coragem militar. Como entretanto escureceu totalmente e a Operação tinha que
continuar ele foi instado a progredir connosco, sob vigilância apertada,
ficando o pessoal sob o comando do Furriel Adário responsável por essa tarefa.
Como por vezes abrandasse a marcha (e seria difícil avaliar se o fazia
propositadamente e sem razão aceitável ou não), para não atrasar a progressão,
era-lhe exibida uma Faca de Mato, ferramenta que ele, como militar, compreendia perfeitamente ser necessário utilizar se se
tornasse um obstáculo à manutenção da cadência de progressão exigida. Chegada a
hora de pernoitar, e após se montar a indispensável segurança nas condições
concretas da Operação, torna-se exigível a especial guarda deste prisioneiro.
Essa missão foi atribuída ao pessoal do Furriel Temudo. Este, com receio de
que, pelo cansaço, os seus homens mais próximos ao prisioneiro pudessem
adormecer, a G-3 de cada um deles foi colocada em local mais afastado pois o
prisioneiro, eventualmente desperto, poderia, num acto de suicídio, arrancar uma
arma das mãos dum militar nosso e fazer estragos, antes de ser abatido.
Entretanto, e no intuito de salvar a vida deste homem, porque, mesmo Inimigo,
era um ser humano, acrescido o facto de poder ser útil em eventuais informações
que resolvesse revelar, pelas nossas Transmissões foi accionada a necessária
evacuação por helicóptero. Manhã cedo, e munido o piloto das respectivas
coordenadas, o Alouette III paira sobre as nossas cabeças, em mata cerrada.
Improvisa-se um ponto de aterragem. Uma pequena ilhota, junto a um rio, para a
qual foi preciso atravessar através de canoa improvisada, foi o local escolhido.
O héli descola rumo ao Hospital Militar em Luanda e a Operação prossegue por
mais um dia. Terminada esta e regressados ao Campo Militar do Grafanil, pessoal
houve, nomeadamente Graduados, que resolveu ir ao Hospital averiguar o estado
de saúde do prisioneiro. E eis que brota espontaneamente o que existe de mais
nobre num coração humano: um prisioneiro inimigo a ser visitado pelos seus
captores. Formou-se, desde aquele momento, uma relação especial, quiçá de
alguma amizade, entre os elementos presentes. Foi notória a evolução de
confiança que o guerrilheiro passou a depositar nas nossas Forças Armadas, com
contagiante disponibilidade de colaboração, talvez por ter sentido que a sua
vida foi poupada e até depois salva por aqueles sobre os quais abriu fogo.
A Guerra tem desta coisas, aparentemente absurdas, mas só quem nela participa
as consegue entender no seu pleno. Felizmente o homem sobreviveu e, já completamente
recuperado, passou a ser mais um cidadão perfeitamente integrado na Sociedade
de então.
CONQUISTANDO OS CORAÇÕES SE VENCE A LUTA, era e Lema do nosso
Batalhão. Deu-se, pois, cumprimento ao seu desígnio.
Armando Mendes Palaio (Narrativa)
Carlos Jorge Mota (Redacção)
Setembro 2015
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