INSÍGNIA E LEMA

INSÍGNIA E LEMA
CONQUISTANDO OS CORAÇÕES SE VENCE A LUTA

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

FALECIMENTOS (XI)

Caros Camaradas:
Face ao silêncio prolongado do Dr. Eduardo XAVIER DA CUNHA, que comigo interagia regularmente através do Telefone e do Facebook, resolvi telefonar-lhe. Perante o encaminhamento sucessivo para o Correio de Voz deixei um recado. Como não obtive retorno em tempo razoável, enviei uma mensagem electrónica para o seu endereço.
Recebi um telefonema da filha comunicando o seu Falecimento, já ocorrido em 29 de Março de 2022..
Apresentei as minhas condolências pessoais e também em nome da Companhia de Caçadores 2506.
Que descanse em paz, após longo sofrimento, nomeadamente de ordem psicológica, que transparecia nas conversas travadas entre ambos.

Fica a memória deste Médico e também nosso Camarada de Armas.


                                           Visita do Gen. Luz Cunha, Comandante da RMA, à Coutada do Mucusso.                                                            Pena è que o Dr. Xavier da Cunha esteja de costas, com as mãos atrás, mas é a única foto que possuo em que ele esteja presente        




                                                      Fotografia recente


Nota: esta informação foi colhida em data relativamente próxima ao seu passamento e foi colocada no Mural da Companhia no Facebook. 






segunda-feira, 25 de setembro de 2023

OPERAÇÃO ZIGUE-ZAGUE

Tendo sido detectada a penetração em solo angolano de numerosos elementos guerrilheiros da UNITA durante os meses de Dezembro de 1969 e Janeiro de 1970, entre os quais estaria presente o Segundo-Comandante daquela Organização, homem hierarquicamente número dois, portanto imediatamente a seguir ao Dr. Jonas Malheiro Sidónio Savimbi, provindos da Zâmbia, por determinação do Comando de Sector da ZIL – posteriormente, em Janeiro de 1971, oficialmente alterada para Zona Militar Leste -, foi montada uma Operação denominada ZIGUE-ZAGUE, com duração de 12 dias, em 2 de Fevereiro de 1970, numa área a sul de Mavinga, no intuito da sua intercepção e aniquilamento, envolvendo apoio aéreo através de Hélis Alouette III, vários Grupos das Nossas Tropas (NT), nomeadamente GE’s (Grupos Especiais, todos nativos de Angola), Condutores da Companhia de Caçadores 2506 e por Flechas - designação atribuída a Bosquímanos, habitantes milenares daquela região kalahariana, e que (os estacionados aquém da fronteira com a Namíbia) combatiam conjuntamente com as nossas forças -, estando toda esta tropa envolvida nesta área da Operação sob o comando do Furriel-Miliciano de Transmissões Vieira Casal, da CCS do Batalhão de Cavalaria 2870, que se encontrava acompanhado dum elemento da sua Unidade, de seu nome Serafim.

Localizados os guerrilheiros, foram feitos os primeiros contactos com o Inimigo (IN), houve troca de tiros, emboscadas nossas e deles, todavia o IN, perante o ímpeto das NT, retirou, neutralizado, deixando o seu rasto, em fuga, pelo chão afora, não tendo nós a lamentar qualquer baixa das NT.

        
                                            Furriel-Miliciano Vieira Casal e o piloto do Alouette III

        Fur-Mil Vieira Casal e Agente da DGS, com Dolmen camuflado, ambos com armas capturadas ao Inimigo

Entretanto, transportado de Helicóptero, deslocou-se, em inspecção rápida ao decurso da Operação, o 2º Comandante do Batalhão de Cavalaria 2870, Major Branco Ló, integrado pela sua Escolta, que se inteirou da manobra militar realizada e dos contactos ocorridos, bem como para distribuição de mais Rações de Combate e Água.

                            Fur-Mil Vieira Casal, um Soldado e  Major Branco Ló, reflectindo sobre aspectos da Operação    

                                                    Fotografia similar à anterior, mas com a presença do Serafim 

Segundo o relato dos Flechas, era hábito dos guerrilheiros auto-golpearem os pés para não pararem a marcha, para evitarem o aprisionamento
A progressão era feita em viaturas a uma velocidade razoável, considerando as características do solo, que eram precedidas por um Pisteiro-Flecha, o qual, logo que atingisse o cansaço, era substituído por um outro dentre os que seguiam a bordo dos veículos.

                                                                                  Aspecto da Mata

Estes homens, conhecedores perfeitos daquele habitat, conseguiam aperceber-se, perscrutando o terreno, do número de elementos em fuga e do tempo entretanto decorrido.
Em dado momento, os Flechas percepcionaram que o IN se havia separado em 8 grupos, a fim de dificultar a acção das NT, desconhecendo-se em qual deles estaria o Comandante, o que inviabilizava a opção da selecção do caminho numa perspectiva de eficácia militar, para se reencontrarem do lado de lá da fronteira, em plena Zâmbia, atravessando o Rio Cuando em pirogas previamente colocadas por eles.
Posteriormente, e decorrente do ganho operacional que estes Flechas colocavam no terreno, foram constituídos mais Grupos desta Força em outras zonas da RMA, com autóctones, mas já sem bosquímanos, porque o seu número era limitado dentro de Angola.
No decurso da Operação foram destruídas Lavras, localizou-se a entrada dum túnel que dava acesso a uma enorme superfície onde estavam armazenados diversos produtos de logística, nomeadamente alimentação de milho, mandioca e outros víveres, medicamentos e material diversificado, tendo tudo sido destruído, bem como armamento e munições de diverso tipo que foram transportados, nos Unimogues, para o Posto de Comando.

      Entrada dum túnel, sendo visíveis o Carvalho, o Almeida e, de costas, um GE e o Fur-Mil Vieira Casal


A população que se encontrava controlada pelos Guerrilheiros foi entretanto libertada e transportada nas viaturas para o aglomerado do Grupo de GE’s que já estava aquartelado junto das NT na Coutada do Mucusso.
Curiosidades a apontar: a abundância de Moscas naquela área, talvez Tsé-Tsé, o entusiasmo dos miúdos – inicialmente um pouco receosos - a quem foram dadas latas de leite achocolatado e barras de amendoins incluídas nas Rações de Combate e, também, a alegria de parte dessa população ao encontrar familiares e conhecidos que já permaneciam nesse acampamento dos GE’s.
Finda a missão atribuída a todo este Grupo de actuação, inserido na Operação ZIGUE-ZAGUE, as Forças regressaram às suas respectivas Unidades para prossecução das tarefas quotidianas, mas sempre em prontidão para novas acções que lhes fossem eventualmente atribuídas, novas Operações inclusive, nesta área geográfica ou em outras mais alargadas.
No regresso deste Grupo, surgiu, entretanto, um contratempo. Um pneu dum Unimogue sofreu um furo e, para azar, o seu sobressalente já havia sido utilizado na substituição dum outro anterior que também furara.
Uma vez que a distância à base era relativamente curta, no estilo tipicamente militar, rapidamente se tomou a decisão de o Unimogue operacional, conduzido pelo Carvalho, se deslocar lá, com uma pequena escolta de GE’s, para recolha dum pneu funcional, e assim se solucionou a questão, após o reencontro no ponto de paragem temporária.

                                                           Condutores Carvalho e Almeida


Em áreas mais alargadas, mas não muito distantes entre si, outros Grupos de Combate da Companhia de Caçadores 2506, sob a coordenação do Alferes-Milicano Armando Madureira, cuja Especialidade era Operações Especiais, estavam também envolvidos nesta grande Operação ZIGUE-ZAGUE, nomeadamente em acções de nomadização, montagem de emboscadas e golpes-de-mão. Todos regressaram ao Aquartelamento sem baixas a assinalar.
A Operação Zigue-Zague citada teve uma duração de 12 dias, englobou efectivos equivalentes no seu todo a cerca de 16 Grupos de Combate, repartidos em grupos de 20 homens, para facilidade de manobra.
Esta narrativa reporta-se unicamente à acção do Grupo aqui envolvido uma vez que, por razões de honestidade intelectual, quem a vivenciou não deverá fazer descrições do que não presenciou. Todavia, como já atrás foi dito, a área que consubstanciava a Operação era muito alargada e com outras tropas a operar no terreno.


Nota:
Durante muito tempo germinou na mente do Camarada Manuel Carvalho a passagem para o papel de lembranças desta Operação em que interveio como Condutor, todavia, com receio de imprecisão ou omissão, nunca o fez.
Sabendo que quem tinha comandado este Grupo havia sido o Furriel-Miliciano de Transmissões da CCS do Batalhão de Cavalaria 2870, numa das várias Confraternizações em que pessoal da Companhia de Caçadores 2506 se fez representar, resolveu, porque já não o conseguia reconhecer após mais de meio século, pelas transformações fisionómicas que inevitavelmente todos sofremos, indagar quem era esse Camarada que provavelmente estaria ali presente. Encontrado o Vieira Casal, imediatamente se trocaram impressões, se desvaneceram dúvidas, se complementaram fotografias, se fez luz suficiente para que a Narração surgisse, solicitando ajuda, sempre disponível, do “escriba de serviço” Camarada Carlos Jorge Mota.

Carlos Jorge Mota

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

FALECIMENTOS (X)

Triste notícia:
Através de Camaradas nossos residentes em áreas adjacentes a Miranda do Corvo, chegou ao nosso conhecimento o falecimento do Camarada Serra, após prolongada doença, tendo-se realizado já o funeral no passado dia 31 de Agosto.
Mais um dos Nossos que parte.
Que descanse em paz.

E nós, que por cá ainda bulimos, cuidemo-nos! 






quinta-feira, 14 de setembro de 2023

ENTREVISTA EM 2010 A NUNO ALEXANDRE LOUDADA - 2º CMDT DO BATALHÃO DE CAÇADORES 2870

No âmbito duma abordagem de estudo académico concretizado por professores que se interessaram por esta temática, foram feitas entrevistas a elementos militares que directa ou indirectamente intervieram nos vários actos que consubstanciaram a Descolonização Portuguesa, entre os quais se incluiu Nuno Alexandre Lousada, 2º Comandante que foi do Batalhão de Caçadores 2872 (o nosso Batalhão), então com a patente de Major, possuidor já nessa fase do Curso de Estado-Maior.

Uma delas, conduzida pela Professora Doutora Ana Mouta Faria, do ISCTE, foi feita em Fevereiro e Março de 2010 ao nosso 2º Comandante, possuidor, nesse ano - em que também faleceu (5 de Junho) - do posto de Coronel, na Reforma, e aborda matéria em que, com o posto de Tenente-Coronel e colocado na 3ª Repartição do Estado-Maior do Comando-Chefe em Moçambique, interveio directamente nas Conversações com a FRELIMO para um Acordo de Cessar-Fogo e posterior desenvolvimento das acções subsequentes atinentes à independência daquele território.

Esta Entrevista - bem como outras duas, uma a Carlos Matos Gomes e outra a José Villalobos Filipe - encontra-se inserta em Livro intitulado VOZES DE ABRIL NA DESCOLONIZAÇÃO, editado em âmbito académico razão por que não se encontra em venda em Livrarias, sendo possível a sua leitura, todavia, em Bibliotecas Públicas, como, por exemplo, na de Matosinhos e do Porto, entre outras.

A publicação neste Blogue desta histórica Entrevista é feita com autorização da Autora-Entrevistadora, após troca de impressões telefónicas e escritas, em que manifestou toda a afabilidade e carinho pelo nosso interesse. Um bem-haja, tanto mais porque se tratou de ouvir as palavras de alguém que connosco conviveu cerca de 26 meses.

"Tropeçámos" nesta Entrevista ao fazer uma pesquisa na Internet para tentarmos averiguar eventual existência de matérias em que o então nosso 2º Comandante esteve envolvido militarmente em acções/eventos relativos à Descolonização, pois era nosso conhecimento que isso havia acontecido, que era do domínio público e confirmado pessoalmente pelo próprio numa Confraternização de Graduados ocorrida anos volvidos. Soubemos do seu posterior falecimento através de informação prestada mais tarde, num outro Encontro-Convívio, pelo nosso Comandante, António Soares, Tenente-Coronel durante a nossa permanência em terras angolanas, entretanto também já desaparecido e cujos restos mortais  jazem no Cemitério de Espinho. 

Esse "tropeço" foi feito no Blogue do Batalhão de Caçadores 1891, que prestou serviço em Moçambique, e a cujos Camaradas, nomeadamente ao gestor do blogue, agradecemos essa possibilidade e a quem rendemos esse crédito.

                                              








Nuno Alexandre Lousada frequenta o liceu em Bragança, onde, no final, é marcante a influência do escritor Virgilio Ferreira, seu professor de Português. Depois dos preparatórios em Coimbra, entra na Escola do Exército em 1948 - 1950, integra a Arma de Infantaria, em Caçadores Especiais , tendo tirado nos Pirinéus espanhóis o curso de Caçadores de Montanha, que preparava unidades de Esquiadores e Escaladores para o Corpo Ibérico do Exército dos Pirinéus.

Fez quatro comissões de serviço no ultramar, a primeira no Estado da Índia (1957/1959) e as duas seguintes em Angola (1961/1963 nos Dembos. e 1969/1971, nas Forças de Defesa de Luanda e no Leste). Com o Curso Geral de Estado-Maior, fará a última comissão em Moçambique como Major e depois como Tenente-Coronel, para onde parte em 1972, ficando colocado na Repartição de Operações do Quartel-General em Nampula quase até ao final da estadia.

Sem um percurso anterior de politização anti-regime, a guerra é talvez o seu mais importante factor de consciencialização e, talvez por isso, era aberto a expressões culturais, como o Cancioneiro do Niassa, que se ouvia em sua casa. Ideologicamente de tendência moderada, em outubro de 1973 integra-se no Movimento dos Capitães, participando na campanha de pedidos de demissão dos Oficiais do Quadro Permanente contra o Decreto 353/73 e subsequentes, sobre as promoções no Exército. É eleito em dezembro desse ano para a Comissão Coordenadora de Nampula.

 

A seguir ao 25 de Abril, embora manifestando discordância com formas de expressão por militares radicais que considerava desprestigiantes para a instituição, vem a integrar o Gabinete do MFA junto do Comando-Chefe em Nampula. É indicado pelo Comando-Chefe para integrar a delegação portuguesa às conversações de Lusaka, que resultaram no Acordo de 7 de Setembro de 1974.


7 de Setembro de 1974, mesa das conversações do Acordo de Lusaka, entre representantes do Governo Português e da FRELIMO

 


Na entrevista publicada a seguir, o assunto central foi a sua participação neste acontecimento, onde, como oficial de operações, teria de se ocupar do acordo para o cessar-fogo e assegurar um prazo viável para retracção do dispositivo militar; a este episódio acrescem as vicissitudes ligadas à eclosão do levantamento anti-independentista em Lourenço Marques e o regresso a Moçambique no dia seguinte, com a missão de acompanhar os primeiros altos quadros da FRELIMO que entraram oficialmente no território.

Regressa a Lisboa em Janeiro de 1975; é colocado no Estado-Maior do Exército, 1ª Divisão. A partir do Verão seguinte apoia o Documento dos Nove.

Tendo sido promovido a Coronel em 1 de Junho de1976, passa com este posto à reserva em 10 de Janeiro de 1985.

Foi entrevistado no âmbito deste projecto por ANA MOUTA FARIA, nos dias 18 e 25 de Fevereiro e 4 de Março de 2010.

 

Acordos e conversações prévias

 Ana Mouta Faria (AMF): 

Senhor Coronel. Vamos, então, falar do Acordo de Lusaka, em cujas conversações participou. Li o seu artigo e uma entrevista que fez o favor de me emprestar, em relação aos quais gostava de esclarecer alguns aspectos. Gostava ainda de lhe perguntar sobre dois assuntos anteriores aos Acordos. Um, foi a libertação dos presos políticos em Moçambique, logo no mês seguinte ao 25 de Abril. Recorda-se?


Nuno Lousada (NL): 
Não, não me lembro.



AMF: 
Não tem memória de haver presos?


NL: 
Não tenho, não. Como lhe disse, eu não era chamado para esses assuntos



AMF: 
Outra pergunta é sobre os elementos da PIDE/DGS.

NL: 

Não sou capaz de concretizar, exactamente, como era, embora me desse muito bem com o oficial da justiça, o chefe do Serviço de Justiça Militar que lá estava, que já morreu. Foi a quem encarregaram de gerir esse assunto da PIDE. Em principio, de acordo com a orientação que teria ido para lá, os oficiais da PIDE/DGS continuavam a desempenhar funções, enquanto elas se revelassem importantes e necessárias para o funcionamento das operações militares, chamemo-lhes assim. Até me lembro de um....


AMF: 

De um inspector?

NL: 

De um inspector


AMF: 

 São José Lopes?


NL: 

São José Lopes, sim. Era o chefe da polícia política, da DGS de Moçambique nessa altura.

 

                          São José Lopes, Director da OIDE/DGS em Moçambique

                      

Portanto, enquanto se tornasse necessário e importante haver a DGS, para estabelecer e facilitar a coordenação e a ligação, eles continuavam. E, depois, seriam ... já não me recordo bem, mas depois acontecer-lhes-ia não sei o quê. Eu suponho que está escrito, parece-me, aqui no Acordo, não?


AMF: 

Não, porque nessa altura, já tinham sido recambiados para Portugal. Acontece antes do Acordo...

NL: 

Então, naturalmente, mandaram-nos logo. Porque depois houve uma mudança de pensamento, digamos, em relção à utilização dos elementos da PIDE/DGS. Acharam que era tolice eles manterem-se, porque já ninguém queria saber da PIDE/DGS, e toda a gente os insultava, e os militares não queriam estar atidos à DGS. Deram uma volta ao pensamento e mandaram-nos embora, tem toda a razão. Mas já não me recordo ao certo, isto já se passou há não sei quantos anos. E a PIDE/DGS era uma coisa que estava um bocado fora do âmbito militar.


AMF: 

E havia que distinguir, talvez, entre duas situações, que eram os agentes, os inspectores, que vinham de Portugal, e depois os informadores, que não eram propriamente do aparelho da PIDE, não?

 NL: Pois, então, isso ainda menos


.AFM: 

Recorda-se do que aconteceu às forças moçambicanas após o 25 de Abril? Havia vários grupos especiais de forças africanas, com designações diferentes.

 NL: 

Lá, estavam todos incluídos num grupo. Os Flechas eram em Angola, em Moçambique, não me recordo do nome. Bem, o que ficou assente foi que esses grupos ficariam, sob, eu sei lá como lhe hei-de chamar...até que fosse decidido se eram todos passados à disponibilidade, ou se teriam outra solução. Na Guiné mataram-nos, foram mortos. Mas lá não aconteceu isso. Ou faram passados à disponibilidade, ou mandados embora, ou integrados em qualquer coisa. Já não me recordo em pormenor....Mas isso foi pensado e discutido.


AMF: 

Que ficariam aquartelados, não sei se se pode dizer assim?

NL: 

Sim, sim, podia ser, que ficariam aquartelados em determinados sítios, a aguardar as soluções que fossem encontradas, mas já não me recordo em pormenor.


AMF: 

As soluções, se calhar, foram encontradas, depois, no âmbito da Comissão Militar Mista?

NL: 

Sim, foram, também. Depois, já incluiu não só autoridades militares, mas também as autoridades políticas, que já eram as novas autoridades políticas, porque era muita gente abrangida.

 


AMF: 

Era muita gente?

NL: 

Era muita gente! Era na Beira, até, que eles estavam.


AMF: 

A ideia que tenho é de que as tropas de recrutamento local, no conjunto, incluindo africanos e não-africanos, digamos assim, não-pretos, eram metade das Forças Armadas que estavam estaciondas em Moçambique, em Abril de 1974.

NL: Acho que não, nem pensar nisso.


AMF: 

Eram menos?

NL:

Eram. As forças naturais de Moçambique, praticamente eram só essas unidades especiais que tinham sido constituídas pelo coronel Costa Campos, salvo erro. O Costa Campos tinha esse comando. Constituíram unidades especiais , assim como havia também em Angola. Não estavam em conjunto com as forças metropolitanas.


AMF:

Mas em Moçambique até estariam ligadas, uma parte, a Jorge Jardim.

NL:

Não. O Jorge Jardim é mais um mito que anda por aí, que nós, lá no Norte, tínhamos tido um conhecimento directo do Jorge Jardim estar a dirigir essas tropas, eu não tenho essa ideia.


AMF:

Ele gaba-se disso nos livros que escreveu

NL:

Está bem, mas isso é outra coisa. É uma entidade que nunca soubemos bem quem era. Nós, os militares, Tenentes-Coronéis, nunca soubemos bem como isso funcionava. Há uns militares que sabem, porque estiveram a trabalhar com ele, lá em Moçambique. O Aniceto Afonso, e esses, sabem bem quem são esses militares. Houve dois militares que estiveram a trabalhar directamente para o Jardim. Mas eu não sei.


AMF: 

Eu apanhei o nome, pelo menos, de um, num dos livros do Jorge Jardim, de quem ele diz claramente que era o elemento de ligação.

NL: 

Pois, o elemento de ligação que ele tinha. Mas como eram coisas mais ou menos secretas, nem sabíamos. De repente, o militar que foi falar com ele desapareceu da circulação. Ninguém disse: o não-sem-quantos foi trabalhar com o Jorge Jardim, ía, mas...aquilo era do tipo secreto.


AMF: 

Depois, houve um militar que trabalhava para o Jardim, ou com o Jardim, que era o Daniel Roxo...

NL:

Esse já não era militar. Era um civil, um caçador. Parece-me que era ali da área do Niassa. Havia outro assim no género, ali para os lados de Tete, mas só me lembro do nome do Roxo. Esse também se dizia que era um empregado do Jardim - era? não era? - não sei.


AMF:

Sim, sim; funcionavam, também, como Informadores.

NL: 

Pois, era possível que funcionassem com isso tudo.


AMF: 

Em Nampula, depois de 25 de Abril, teve ocasião de observar solicitações às Forças Armadas Portuguesas, quando havia conflitos, problemas, entre africanos e portugueses?

NL: 

Conflitos de que tipo?


AMF: 

Por exemplo, havia reivindicações nas empresas, havia tensões entre colonos e naturais?

NL

Em Nampula, não. Mas tenho a impressão de que, depois, nas outras localidades, já fora, muitas vezes, as Forças Armadas eram a via que actuava. Mas nisso nunca entrei.


AMF: 
E lembra-se de ter constatado algum movimento de regresso a Portugal da parte dos colonos que estavam instalados em Moçambique? Da parte de brancos.

NL: 

Não, porque isso se processava tudo cá em baixo. Passava-se tudo na área de Lourenço Marques...ou, Maputo, Beira, por ali. Lá no Norte, em Nampula, não, que praticamente estava quase despovoada. E os que lá havia, lá se aguentaram...Não houve assim um movimento de regresso à Metrópole.


AMF: 

Como o que houve em Angola?

NL: 

Não, não houve.


AMF: 

Disse-me que antes de partir para Lusaka, integrado na delegação, veio a Lisboa, onde teve uma entrevista com o Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, General  Costa Gomes. A pergunta, no caso de entender que deve esclarecer, é se o CEMGFA lhe deu indicações específicas sobre a sua missão neste acontecimento.

NL: 

Não, não me deu informações específicas. Eu é que vinha para lhe pedir informações específicas sobre como estabelecer um acordo de cessar-fogo com a FRELIMO. Porque - e foi essa a razão que me levou a pedir a entrevista ao General Costa Gomes - o MFA que estava em Moçambique, e até todos nós, militares, estávamos com um problema. Era que as nossas tropas já não combatiam.

 

                                      

A entrada da FRELIMO em Nangade


Começou a acontecer a tal coisa, que me levou a mim a...deixar o MFA. Começaram a dizer que as nossas tropas andavam lá a "matar pretos", e isto e aquilo....Por um lado, as nossas tropas vontade de combater já não tinham nenhuma, nenhuma! Antes das negociações com a FRELIMO já tinha havido dois acontecimentos chatos, um em Omar e o outro, parece-me que não é muito falado, que foi, salvo erro, em Mocímboa do Rovuma. Em que o homem que lá estava a comandar o Batalhão tomou a decisão, quanto a mim acertada, de retirar de Mocímboa do Rovuma para Mueda, que era a capital, para evitar que aquilo desse em debandada. Porque eles já não combatiam! E iam render-se aos outros, não é? Ele ainda é vivo, não me recordo agora do seu nome. Assumiu, e muito bem, o comando do Batalhão, e sujeitou-se a ser punido por retirar frente ao inimigo. Assim, conseguiu que o Batalhão retirasse de Mocímboa do Rovuma e viesse para Mueda, inteirinho, comandado, sem desordem nenhuma, e que não ficasse lá ninguém, ou se entregasse ao inimigo.


AMF: 

Isso porque já tinha havido um...problema anterior.

NL: 

Não sei se Omar foi antes ou depois. Mas o que penso é que já tinha havido estes episódios e mais umas coisas noutros sítios


AMF: 

Mais uns dois ou três casos, pelo menos.

NL: 

Antes de partir para as conversações de Lusaka, fui pedir audiência ao General Costa Gomes, porque nós pensávamos: ou adquirimos um acordo de cessar-fogo com a FRELIMO ou qualquer dia eles pôem-nos daqui para fora a pontapé, sem precisarem de nos dar tiros, porque as nossas forças já não combatem. E depois, tínhamos de ir embora maltrapilhos...Tinha de se fazer um acordo de cessar-fogo antes, para não passarmos pela vergonha de sermos empurrados para o mar. Em linguagem rude, era isto. E foi isto que vim dizer ao General Costa Gomes: - Olhe que se passa isto, nós estamos a ver...; porque já não se combatia. Havia Capitães-Milicianos de Engenharia que já não mandavam as tropas fazer nada! Milicianos...porque estavam todos já no outro lado...A minha entrevista com o Chefe do Estado-Maior foi para lhe apresentar este aspecto.


AMF: 

Quando diz o outro lado, está a referir-se à vontade de regressar?

NL: 

Queria dizer: à vontade de regressar, já não queriam combater. As províncias ultramarinas eram para ser independentes, portanto já não punham as tropas a combater.


AMF: 

Já não fazia sentido, não é?

NL: 

Sabe o que se passou com as forças em Angola, nalguns sítios? Que se entregaram?


AMF: 

E foi o que aconteceu em Omar?

NL: 

Em Omar entregaram-se...

 

                                 

                             4-8-1974, dia do apressado abandono de Nangololo por parte da CART 7256                                              

AMF: 

Mas houve prisioneiros feitos por parte da FRELIMO

NL: 

Não houve prisioneiros, ninguém fez prisioneiros, mas não há dúvida nenhuma de que se entregaram, quer dizer, entregaram as armas, entregaram tudo, e já não eram combatentes! Mais um bocado e a FRELIMO dizia: Pst!, eh, ponham-se a andar, e aquela malta punha-se toda a andar!


AMF: 

Também na entrevista que fez, e me deu a ler, diz que em Lusaka houve uma longa discussão. Como é que as discussões estavam organizadas? As delegações dividiram-se em grupos ou estiveram sempre juntas?

NL:

 Não, não, foi sempre à mesa...


AMF: 

...frente a frente?

NL: 

...Uma delegação de um lado, outra delegação do outro, e depois, iam surgindo os assuntos: “Então e agora como é que se faz, e como vai ser...?” E depois, ficou mais ou menos exarado. Não houve aquilo que se possa chamar de uma discussão grande, não houve ali um grupo a tratar de um assunto e outro a tratar de outro, não...foram-se tratando os assuntos assim. Não pacificamente, isso não...Não vale a pena estar aqui com coisas, que o Samora Machel fartava-se de nos chamar colonialistas e outras coisas parecidas...


AMF: 

Era ele principalmente quem falava, ou havia outras intervenções?

NL:

 Ele, ele...só falou ele! Não deu a palavra a mais ninguém.


AMF: 

Não viu lá, nessa altura, o Aquino de Bragança?

NL: 

O Aquino de Bragança não estava na mesa. Mas estava em Lusaka, eu viu-o lá.


AMF: 

Ele não era natural de Moçambique, não é?

NL: 

Pois, não era moçambicano,não.

 

                                                   AQUINO DE BRAGANÇA


AMF: 

E falou-se num anteprojecto. Tem ideia de que haveria um anteprojecto, trazido pela...

NL: 

Pela FRELIMO. Tenho ideia, mas não juro...


AMF: 

Lembra-se de como é que se falou, se se falou, da libertação dos militares que havia presos, pela FRELIMO, durante a guerra? Havia alguns, não? Que depois vão ser libertados mais tarde.

NL: 

Sim, falou-se. O assunto foi abordado. O que se passava é que, da FRELIMO, quem é que tinha prisioniros nossos? Que nós soubessemos, ninguém. Não tinham ninguém.


AMF: 

Havia uns quantos prisioneiros

NL: 

Em Moçambique?


AMF: 

Não, estavam na Tanzânia.

NL: 

Eu tenho a impressão que não havia ninguém. Agora, já lá vão estes anos todos... Mas tenho a impressão de que não havia ninguém. Isso foi uma das coisas que o Samora Machel queria saber: "Então, agora como é para os prisioneiros da FRELIMO?". Penso que nós também não tínhamos nenhum. Não havia propriamente prisioneiros, de maneira que foi um assunto que automaticamente se resolveu.


AMF: 

Portanto, não houve discussão ou debate sobre troca de prisioneiros?

NL: 

Não, não. Quer dizer, terá havido conversas sobre a troca de prisioneiros, mas foi um assunto que ficou resolvido, digamos, sem mais formalismos.


AMF: 

Sobre a PIDE, poderiam, em Lusaka, ter falado alguma coisa?

NL: 

Não, não, não.


AMF: 

Sobre os combatentes africanos, moçambicanos, que estavam integrados nas Forças Armadas Portuguesas? Em Lusaka, falaram sobre esse assunto, recorda-se?

NL: 

É possível que se tenha falado, mas volto à mesma, o que ficou assente, o que eu me recordo, é de que essas forças estavam ... aquarteladas, talvez.

  

                            


AMF: 

E sobre o destino dos colonos brancos, debateram isso?

NL: 

Tropelias


AMF: 

E sobre a questão da nacionalidade? Porque está ligada com a questão dos colonos. Quem é que teria direito à nacionalidade portuguesa ou à nacionalidade moçambicana?

NL: 

Também não foi discutido. É por isso que volto a dizer, como já lhe tinha dito em OFF, que deve haver um artigo, ou um acordo prévio, em que discutiram isso. Porque se lermos o Acordo de Lusaka não diz nada sobre o assunto.


AMF: 

Pois não.

NL: 

Não diz nada. Portanto, tenho a impressão de que isso já teria ficado acordado.


AMF: 

E sobre os futuros serviços e estruturas de Moçambique que, anteriormente, eram ocupadas pelos portuguesas?

NL: 

Pois, os organismos civis, era tudo para resolver - suponho que está escrito em algum lado - pelo Victor Crespo, que era o Alto-Comissário. O Alto-Comissário resolveria isso com as autoridades da FRELIMO. A parte militar, essa, nós assentámo-la logo. Assentámos logo que, por exempço, todos os materiais ficavam para a FRELIMO, não íamos trazer para a Metrópole o material de guerra que lá estava. Só algum material que ainda não tivesse entrado ao serviço, que tivesse chegado há pouco tempo a Moçambique e que ainda estivesse para ser distribuído aos orgãos executantes, esse já não se desencaixotava. O outro, nós entregámos tudo à FRELIMO. Entregámos viaturas... entregámos-lhes isso tudo.


AMF: 

E sobre a questão das minas colocadas, lembra-se de terem falado?

NL: 

Falou-se, falou-se nisso das minas. Era um problema que tinha de ser resolvido localmente. Porque quem as tinha colocado saberia onde as tinha colocado. Em Moçambique não houve grandes problemas com as minas. Por lá resolveram os problemas entre eles.


AMF: 

E relativamente ao funcionamento da Economia, recorda-se?

NL: 

Economia?...É por isso que lhe digo que terá havido o tal acordo prévio, ou então que isso terá estado englobado nos assuntos que o ACORDO estipulava que deveriam ser resolvidos pelo Alto-Comissário. Ele depois é que teve de resolver esses assuntos com as autoridades da FRELIMO, não foi ali entre nós. Ali foram só os aspectos militares


AMF: 

Esse é que foi o factor decisivo?

NL: 

Pois, foi o leitmotiv


AMF: 

Então, também não se terá falado a respeito da cooperação com Portugal, das relações de cooperação, depois da independência?

NL: 

Também não.


AMF: 

Isso vê-se bem no texto do Acordo. Disse-me, então, que, da parte moçambicana, o único interlocutor a falar foi o Samora Machel.

NL: 

Da parte moçambicana, foi ele. O Presidente é que falava, e os outros atrás ouviam.


AMF: 

E nunca se manifestavam, na reunião?

NL: 

Não, não se manifestaram.


AMF: 

Tem ideia se se falou em Lusaka sobre o número de combatentes da FRELIMO?

NL: 

Sobre números já não me recordo, mas é possível que sim. Mas ficou ali, depois não se fez coisa nenhuma...Ter-se-ia discutido, por exemplo, qual o efectivo militar que estava em Mueda, e qual o efectivo militar da FRELIMO que iria ficar em Mueda. Isso é possível ter-se referido, mas sem nenhumas consequências. Foram depois as autoridades militares, as nossas e as deles, que discutiram isso, sobretudo depois em Nampula, as quais foram comigo depois da assinatura do Acordo.


AMF: 

Sim, provavelmente até no âmbito da Comissão Militar Mista.

NL: 

Pois.


AMF: 

Portanto, em Lusaka, esses assuntos não foram pormenorizados?

NL: 

Não.


AMF:  

Um segundo aspecto: depois da assinatura do Acordo, o senhor Coronel ficou mais tempo em Lusaka do que o resto da delegação portuguesa, que veio imediatamente embora...

NL: 

Essa veio-se logo embora. Assim que assinámos o Acordo. Aquilo acabou às duas e tal da tarde. Almoçaram, comeram qualquer coisa, foram para o aeroporto e vieram-se embora para Lisboa. Nos livros do Almeida Santos e dos outros....Nenhum deles quer reconhecer, perdoe-me o calão...QUE SE PIROU ! Mas piraram-se todos, deixaram-me sozinho no aeroporto


AMF: 

Ficou até quando?

NL: 

Fiquei até ao outro dia...


AMF: 

Até ao dia 8, portanto

NL: 

O Acordo foi a 7, por isso foi a 8


AMF: 

E quanto àquele outro episódio, em Lusaka, depois da vinda da delegação portuguesa?

NL: 

Portanto, os nossos amigos de cá, a delegação....pirou-se, e eu fiquei no aeroporto sozinho. Eu até costumo brincar e dizer que disse para mim mesmo: “ Ó Nuninho, tu metes-te em cada uma, pá...!’”

 

           

                        Jornalistas presentes no Acordo de Lusaka


Olhava para os lados … e não via ninguém, fiquei único! Bom, eles tinham-me posto um motorista, um carro de Táxi, à disposição. De maneira que estava  de Táxi, e pensei: “E agora para onde é que eu vou?” ...; E lembrei-me: “há uma coisa, um garden party...” Havia um beberete, oferecido pela comunicação social de Moçambique afecta à FRELIMO. Estava lá a decorrer, realmente, nos jardins, ao lado do Palácio do Governo, ou coisa assim. Disse ao Táxi para me levar para lá e fui buscar um grelhado qualquer...E andava - isto, autenticamente, é verdade - eu andava, pronto, contente, quando apareceu o tal senhor. Um tipo com um cartaz muito grande, a dizer; Tenente-Coronel Lousada, o Presidente Samora Machel chama-o ao Palácio do Governo. E eu: “Olha, pá, agora só me faltava esta...”. Mas lá fui. Meti-me no tal Táxi e fui para o Palácio do Governo. E quando lá entrei - até tenho para aí escrito - o Samora Machel veio direito a mim, a dizer-me: “Traição! Isso é verdade…?”

 



Ten-Cor Nuno Lousada (à direita), com Samora Machel e os chefes militares da Frelimo, presentes em Lusaka
 7 de Setembro de 1974, depois de assinado o Acordo de Lusaka. E após a revolta em Lourenço Marques


AMF: 

Zangado?

NL: 

Zangado! Mas não me chamou nomes nenhuns, nem me invetivou. Veio a dizer: “Traição!” E eu..., pode imaginar-me, com cara de parvo, não sei que cara seria a minha, mas assim: “Mas, traição o quê pá?!!, e ele: “Traição. Então não ouviste?! Acabámos de assinar um acordo de cessar-fogo, pá, e já estão a fazer operações militares contra nós, contra a FRELIMO, em Lourenço Marques! Então, não sabes?”. “Eu não,Eu  não sei nada! Eu venho do Garden Party, não sei nada...” E ele: “Então ouve aqui”: E pôs-me a ouvir uma estação de rádio que estava a transmitir a rádio de Lourenço Marques – isto, embora pareça que não é importante, é. E então, estava um fulano, nem sequer sei quem era, a dizer pela rádio que negavam o Acordo de Lusaka, e que já tinham o apoio das unidades militares de Moçambique para continuar a luta, e que até já - e aí eu estava aflito...- as unidades de Nampula e unidades de Comandos estavam para actuar...Pode imaginar o assustado que eu estava nessa altura...? 


AMF: 

Ficou numa situação muito delicada, não?

NL: 

Se  estava delicada! Dizia o Samora Machel:  “E foi o Presidente Spínola que deu as ordens para os tipos de Lourenço Marques se levantarem e fazer isso” E eu: “ Eu não acredito nessa coisa, essa coisa que estás a dizer. Olha, com as unidades de Nampula ficou estabelecido... - que grande merda!” olha, um merdas de um Tenente-Coronel como eu, desculpe o palavrão, é que ia agora mandar as forças de Nampula? Ficou acertado, entre mim e elas, que só actuavam se eu lhes desse ordem ou autorização, portanto as forças de Nampula não se mexem, pá, está descansado. E, pelos Comandos, também respondo eu que não!”, e o Samora:  “Tens a certeza?”, e tal? Isto foi a conversa entre mim e o Samora!... “Tens a certeza?”. “Ttenho a certeza, respondo por isso. Respondo! As forças de Nampula estão à espera que eu lhes diga, se sim, se actuam, e os Comandos também não actuam sem ordens minhas’’

 

AMF: 

Mas quando diz Comandos, são as unidades de Comandos ou os comandos militares?

NL: 

Os Comandos, tropas. Porque o que estava na rádio, estava dizer:  e os Comandos ... também iam todos actuar...Antes disso, o Samora Machel tinha-se voltado para trás, para o Mabote, e tinha dito: “Dá ordens para as forças da FRELIMO atacarem todas as forças portuguesas!” 

 

                


General da FRELIMO Mabote

 


E eu, se não desmaiei na altura, nem tive nenhum ataque de coração, também já não devo ter! Eu sabia o que se tinha passado em Omar, o que se tinha passado em Mocímboa do Rovuma, o espírito com que estavam as tropas, e pensava:  isto é o fim da macacada, se as forças da FRELIMO atacam de repente as nossas forças...isto vai ser o fim, o fim... Disse-lhe - a expressão verbal foi:  “não faças isso!” ,e ele voltou-se para mim:  “Não faço isto?! Então o que faço?” E eu tive uma frase política, que não sei como me ocorreu...às vezes estas coisas na vida saem sem querer...Disse: “Faz aquilo que achares melhor para o Povo de Moçambique e para o Povo Português!”. E o Samora Machel olhou para mim, voltou-se para trás, para o Mabote, e disse: “Sem efeito a minha ordem Eh pá!”.


AMF: 

Respirou fundo.

NL: 

Respirei fundo, bem...E a partir daí, depois: "Então, vamos ver se as indicações que estão a dar pela rádio são coisas do Spínola". E fomos lá para cima, para a zona do Palácio do Governo que estava entregue a eles, e telefonou-se para o Spínola, e correu mal, correu muito mal! Eu não ando agora a dizer por aqui e ali, mas correu mal. Correu muito mal entre os dois, e ficou a coisa muito crispada. E depois parece-me que já foi por sugestão minha, ou então foi ele que perguntou, telefonou para o General Costa Gomes. E o Costa Gomes, que não tinha nada a ver com o Spínola, fez uma conversa: " Não senhor, daqui não houve ordem nenhuma para Lourenço Marques, é a paz, é o Acordo de Lusaka" ... bom, já não sou capaz de repetir ao certo. Pronto, e o Samora sossegou. O Samora sossegou, depois da conversa com o Costa Gomes. E foi quando, depois, me foi servido o tal jantar, pela Graça Simbine. E o ambiente ficou assim.

Bem, e depois, então, começámos a combinar a vinda para Nampula no dia seguinte, quem vinha comigo e quem não vinha. Assentou-se quem é que vinha no outro dia. Fez-se o pedido: um avião, alugaram um avião de Nampula para nos vir buscar, e pronto, passou-se assim o resto da noite, até as pessoas se deitarem.


AMF: 

Tratavam-se por tu

NL: 

O Samora Machel tratava tudo por tu. E eu tratava-o também a ele. Tratava toda a gente por tu, sobretudo os combatentes. Na mesa das negociações, a certa altura, o Samora Machel tinha perguntado: “Quem é que está aí, na delegação portuguesa, das tropas combatentes?” e eu não vi ninguém levantar-se, porque ninguém se podia levantar, e levantei-me eu. “Estou eu, que sou das Operações do Quarte-General”. E ele:  “É que eu tenho aqui os meus comandos todos, e tal---",“ então, daqui estou eu", disse-lhe eu, "sou combatente", mas agora estava nas Operações. Bom, e dali para a frente, o Samora falava a olhar para mim, não para os outros. Porque ele era um cabeça..... Portanto, para ele... aquele, que é o combatente, é com aquele que vou falar. E depois, como digo, decorreu o que decorreu, naquela conversa no Palácio do Governo.


AMF: 

Entenderam-se entre combatentes.

NL: 

A coisa com que ele ficou pelo Tenente-Coronel, que era como ele me chamava, eu era o Tenente-Coronel


AMF: 

Quanto ao episódio da noite de 7 de Setembro tenho uma dúvida, porque há informações contraditórias em fontes impressas...Portanto, durante a conversa com Samora Machel, à noite, no hotel, o senhor Coronel diz que houve um primeiro telefonema para o General Spínola, para o Presidente da República...

NL:;

Sim


AMF:

 ...que correu mal, não foi?

NL: 

Sim, correu mal.


AMF: 

E depois, que há um segundo telefonema, para o General Costa Gomes...

NL: Sim


AMF: 

Ora, eu encontrei, num livro do jornalista João Paulo Guerra, que esse segundo telefonema teria sido feito para o Primeiro-Ministro, que era Vasco Gonçalves...

NL: 

Comigo a tomar parte no assunto, não foi, Foi para o General Costa Gomes.


AMF: 

E o engenheiro Monteiro da Silva também refere que o segundo telefonema é com Vasco Gonçalves.

NL: 

Então, esse não foi comigo.


AMF: 

Provavelmente é um engano, mas...

NL: 

Comigo, o que houve, e eu é que estabeci conversa com o General Costa Gomes, e disse que estava a conversar com o presidente Samora Machel sobre o que se estava a passar em Lourenço Marques...Isso foi comigo e com o Costa Gomes. Se houve alguma coisa com o Vasco Gonçalves foi fora do meu conhecimento.


AMF: 

Portanto, não foi durante esse episódio?

NL: 

Acho que não.


AMF: 

Não deve ter sido então...isto acontece muitas vezes. Uma pessoa comete um erro, e depois as outras vão-se baseando nela e vão-se repetindo. Às tantas, esta informação já aparece em vários sítios diferentes.

Há algum outro aspecto que ache importante referir, relativo a Lusaka? Que eu não esteja a ver...

NL: 

Deixe-me só falar numa coisa, que me está...eu não sei qual é a possibilidade que têm de conseguir isto...No Maputo, eles têm isto tudo registado com certeza, eu quase jurava que eles têm isto tudo gravado, todas estas coisas que se passaram.


AMF: 

Gravadas?

NL: 

Estou convencido de que sim, de que têm aquilo tudo gravado. Que possibilidades teriam, entidades oficiais de investigação histórica cá, de pedir? Mostrem lá o diário das conversaçõs em Lusaka, não sei que possibilidades é que...porque têm tudo gravado.


AMF: 
Lembra-se de que havia gravação a decorrer?

NL: 
Não, porque, para já, eu estava nervosíssimo, como pode calcular! E estava era com atenção ao que se estava a passar comigo, e em relação àquilo que se estaria a passar por fora. Se estariam mesmo a gravar, ou não, eu não cheguei a aperceber-me . Mas estou convicto de que sim, de que eles gravaram tudo.


AMF: 
Bom, para conseguir isso precisávamos de duas coisas: de dinheiro para lá ir, que é o mais fácil; e da autorização para consultar esses registos, no caso de terem existido. Essa é mais difícil. Mas é uma boa sugestão, e eu vou ficar com ela.

NL: 
Pois, eu não queria esquecer. É uma coisa que eles, de certeza....
Eu não ponho a cabeça em sítio nenhum por nada....mas quase juro que eles, se não gravaram tudo, pelo menos parte daquelas coisas gravaram. Eu tenho a impressão até...que aquela senhora célebre que foi directora de um jornal...



AMF: 
A Vera Lagoa?

NL: 

Que a Vera Lagoa chegou a referir, mas também o que ela dizia não se escreve....Tenho a impressão de que escreveu qualquer coisa assim, que a conversa que houve entre mim e o Samora estava gravada...


AMF:
À noite?

NL: 

À noite. Ela escreveu isso. Até dizia que o Samora me tinha insultado, e não sei quê, o que é mentira, não tenho pejo nenhum em afirmar.


AMF: 
Nem da parte dele, nem de outras pessoas?

NL: 
Nem de outras pessoas. É como eu digo, quase ninguém abria o bico, pelo menos, eu não tenho ideia de ouvir abrirem...


AMF: 
Mesmo à noite?

NL:
 Mesmo na conversa à noite . Mas a Vera Lagoa escreveu isso no jornal. É mentira que ele me tenha insultado. Mas continuo convencido de que há gravações disso. E quem sabe, também, se há gravações ou não é a Graça Simbine

 

   

                    Casamento de Graça Simbine com Samora Machel



AMF: 

Depois Graça Machel.

NL: 

Depois Graça Machel. Que ela eatava ali, foi ela que nos serviu o jantar, nessa noite. Porque estas coisas deram muita coisa que falar. E portanto, não sei que horas eram, e eu ainda não tinha jantado...


AMF: 

Mas isso foi onde, no hotel?

NL: 

Em Lusaka. No Palácio do Governo. E, a certa altura, a Graça Simbine foi buscar meio frango, ou qualquer coisa assim, e deu-nos de jantar. Isto é para lhe dizer que não jogámos à pancada, nem nos insultámos...Foi ela que serviu o jantar, e ficou minha amiga, muito minha amiga.

                  

                         Samora Machel  na sua visita a Portugal em Outubro de 1983


AMF: 

 Como se vê, depois por aquela declaração de apreço quando vieram a Portugal em visita oficial. Muito obrigado por essa sugestão, que é muito útil. Assim eu a consiga concretizar.
Em seguida, conforme vi na sua entrevista, quando regressou de Lusaka a Moçambique, regressou directamente a Nampula. E viajaram consigo...

NL: 
Como estava no Acordo, já não sei como está escrito. Mas sei que ficou decidido na reunião que eu no outro dia iria para Nampula com os chefes principais da FRELIMO, como fui, com o ministro da Defesa, o chefe do Estado-Maior, o comandante militar não sei de onde...Ainda sei, mais ou menos, os nomes deles. Lembro-me do Chipande, era o ministro da Defesa, do Mabote que era o CEME, o comandante do Exército. Do Armando Panguene. Já só falta um, que não sei se era o Gebuza.


AMF: 
O Actual Presidente.

NL: 
Mas tenho a impressão que não era o Guebuza, que era outro, também um comando das forças operacionais deles. Mas destes três lembro-me.


AMF: 
Não encontrei ainda, em sítio nenhum, referência a quem são esses primeiros elementos da FRELIMO. São os primeiros que entram?

NL: 
Vieram comigo. Foram os primeiros, precisamente com a missão de constituir aí uma Comissão Militar Mista. E depois o Quartel-General nomeou os oficiais que tinha de nomear, e estabeleceu-se essa Comissão com a FRELIMO, e começou-se a estudar, a pensar e a organizar a retracção das nossas forças e o avanço das tropas da FRELIMO, claro. E seriam depois essas quatro entidades da FRELIMO, que eram os comandos principais, que, juntamente com as personagens do Comando Militar português de Moçambique - que estava em Nampula, e depois até veio para Lourenço Marques -, iriam estabelecer as normas e organizar em detalhe como seria então com as forças portuguesas que estavam no terreno.



AMF: 

A retracção das forças?

NL: 
A retracção das forças portuguesas e a entrada em dispositivo das forças da FRELIMO. Isso era depois com a Comissão Mista, que isso tinha de ser feito no terreno. Senão não se podia estar: o comando em Nampula, o comando em Montepuez, o comando não sei onde, dava uma salgalhada com o comando.


AMF: 
Foi uma operação de grande envergadura.

NL: 
Foi formada essa Comissão Militar Mista, que estudava como se ia fazer, e os passos em que aquilo se ia fazer, e depois, como estava no Comando Militar, as ordens iam saindo para os respectivos comandos militares, para darem execução ao plano que se tinha estabelecido, à programação.


AMF: 
Mas, e as suas funções específicas, nesse tempo?

NL: 
Mantiveram-se onde estavam, porque eu estava precisamente na Repartição de Operações do Quartel-General.


AMF: 
Portanto participou nesse planeamento?

NL: 
Sim, participei. Já não muito, porque como eu vinha embora...Quer dizer, já estava, digamos, com os pés nos estribos... Mas ainda participei nisso.


AMF: 
Foi a sua actividade principal?

NL: 
Aí, foi.


AMF: 
Lembra-se do 21 de Outubro?

NL: 
O que é o 21 de Outubro?


AMF: 
É uma réplica do 7 de Setembro, em Lourenço Marques, em que há um massacre...há muitas mortes de brancos...

NL: 
Isso foi no 7 de Setembro.


AMF: 
E, depois, volta a haver no dia 21 de Outubro

NL: 
Ah, disso eu já não sei.


AMF: 
Pois estava longe, não é?

NL: 
Estava longe.


AMF: 
Não chegava ao seu conhecimento?

NL: 
Não. Até desconheço essa data e tudo.


AMF: 
E ficou em Nampula até ao final? Não veio para Lourenço Marques?

NL: 

Não, fiquei até Janeiro em Nampula


AMF: 
Alguma vez voltou a Moçambique ?

NL: 

Não


AMF:
Nem manteve relações com moçambicanos?

NL: 
Não, por cá, não mantive. A não ser quando cá veio o Samora visitar o Presidente da República, então tive outra vez conversas, com ele e com a mulher. Mas, de resto, nunca mais tive ligações com as coisas de Moçambique. Como lhe digo, eu também não era...muito afecto, digamos, às organizações que havia por cá, que, na altura, eram quem falava com Moçambique e Angola, e eu não era chamado para nada disso.

 

        


Rádio Clube de Moçambique, em Lourenço Marques.
7 de Setembro de1974

 

 AMF:

Lembra-se de algum episódio que tenha sido referido durante o tempo em que lá esteve e de que não se tenha falado ainda? 


NL

Não, enquanto lá estive, não. É que, nos meios militares, as coisas passavam-se um bocadinho...à distância. Não é estranho, é mesmo assim. Eu era um Tenente-Coronel, oficial adjunto da 3ª Repartição do Chefe do Estado-Maior, e ninguém ligava a mais nada do que a isso. Portanto, só iria saber alguma coisa que eu pudesse apanhar por fora. O resto passava-se nos escalões de General e Brigadeiro. E o Tenente-Coronel que estava lá, chefe da repartição, não sabia de nada


AMF:
Não lhe chegava a informação?

NL: 
Não, não me chegava a informação.


AMF:
Muito obrigado pela sua colaboração

 

Carlos Jorge Mota