Ainda com apenas cerca de quinze dias de Angola, a minha Secção foi
encarregada de escoltar transporte de munições a uma Unidade estacionada em
Maquela do Zombo, localidade situada bem no Norte, entre os Distritos do Zaire
e do Uíge, muito próximo da fronteira do então Zaire (país), zona de fortíssima
actividade inimiga.
Seguimos em dois Unimogues, cujos condutores eram o Freitas e o
Carvalho, e colocámo-nos num dispositivo típico de escolta, neste caso a uma
viatura pesada civil requisitada pelo Exército e que transportava munições.
Foi-me transmitido que, algures, num ponto do qual já não me lembro o
nome, seríamos reforçados por elementos de uma Companhia em quadrícula naquela
área, só que ninguém apareceu e também não recebi, na qualidade de Comandante
da Escolta, qualquer informação dessa ausência.
Chegados ao destino, o Oficial-de-Dia à Unidade destinatária dessas
munições perguntou-me onde se encontrava o resto do pessoal. -“Que resto?”, respondi.
–“Somos só nós!”. Ele, estupefacto, vociferou contra a irresponsabilidade de
quem nos incumbiu daquela tarefa com tão poucos efectivos. Regressámos à base
em Luanda, eu muito apreensivo fiquei com aquele desabafo, mas, felizmente, nenhum
incidente ocorreu no retorno.
A nossa Companhia (2506) entretanto, ao fim de 3 meses, marchou para
as Terras-do-Fim-do-Mundo, em reforço do Batalhão de Cavalaria 2870, cuja sede
estava em Serpa Pinto, mas a minha Secção, bem como a do Veríssimo, que era de
Armas Pesadas, ficámos no Grafanil.
Um belo dia, e estava o Veríssimo de Serviço-de-Dia ao Batalhão,
recebo ordens para comandar duas Secções, a minha e a do Veríssimo, e irmos fazer
uma escolta a uma viatura militar que iria entregar munições a uma Unidade estacionada
no Zenza do Itombe, no início da Mata dos Dembos, que tinha o epíteto de
Companhia “O Bando”.
A viagem
correu muito bem, chegámos no outro dia ao amanhecer ao nosso destino e, para
meu espanto e dos dez que me acompanhavam, à entrada do aquartelamento estava colocado algo que sugeria ser uma caveira e com o seguinte dizer: “NÃO HÁ PERIGO DE CHEIRAR MAL PORQUE MUDAMO-LA
TODOS OS DIAS”. Percebi logo que aqueles “velhinhos” (designação em gíria
castrense para quem tivesse já ultrapassado metade da Comissão - e estes estavam próximo do fim) deveriam
estar quase todos bem avariados da cachimónia, face ao tempo decorrido e ao
perigo iminente no quotidiano militar.
Dirigi-me ao Capitão,
Comandante daquela Companhia, e dei ordem ao pessoal sob o meu comando para se
manter nas viaturas. Entretanto, os Camaradas de lá, ao estilo de boas-vindas
aos novatos, pois percebia-se pela cor ainda muito viva do camuflado que
vestíamos, diziam: “maçaricos de merda, daqui não saís vivos” e outros
impropérios a que o pessoal se ia habituando e que já era um ritual.
O Capitão
perguntou-me quem eu era, pois nunca tinha visto a minha cara, disse-lhe
que trazia munições e pedi-lhe instruções para me indicar a quem as
entregar.
Levantou-se,
olhou para mim - e nunca esquecerei aquele olhar revelador de mente insana - e
disse-me: - “Entregue ao FDP do Oficial-de-Dia,
que deve ainda estar bêbedo, pois aqui, desde o Capitão ao Raso, são todos bêbedos”.
Não sei se a frase fez parte do ritual de boas-vindas ou se todo aquele pessoal
estava mesmo transtornado da “mona”. No início admiti ainda que era
brincadeira, mas, ao outro dia, quando fomos tomar o Pequeno-Almoço, estava um Barril
de Vinho … em vez da Panela do Café. NEM NO APOCALIPSE NOW! Minha mente
colapsou por instantes …
Saí, fui ter
com o Oficial-de-Dia para lhe entregar as munições, e a primeira pergunta dele
foi se tinha sido o “bêbedo do Capitão” que me tinha mandado dirigir-me a ele.
Respondi-lhe afirmativamente e aproveitei para solicitar se nos abonavam alimentação
quente e onde nos poderíamos deitar. Ficámos ao ar-livre e fomos dos últimos a
comer. Mantivemo-nos sempre todos juntos e fizemos sentinelas entre nós, pois
eu percebi logo que algo ali não batia bem.
No dia
seguinte fui chamado ao Capitão que me disse que eu e o meu pessoal nos iríamos
integrar numa Operação, reforçando um Pelotão, nas margens do Rio Zenza.
Eu retorqui
que só tinha recebido instruções para entregar as munições e que nunca me foi
referido o efectuar qualquer Operação. –“Faça
o que lhe digo, vá”, proferiu. Ignorava à data se ele teria ou não competência
para dar aquela ordem, mas … cumpri, como mandam as Regras Militares, e lá
fomos para a dita.
Lembro-me que,
a dado momento, um dos Furriéis desse Pelotão reparou que já tínhamos passado
pelo mesmo local duas vezes. Chamou o Guia e disse-lhe do que se tinha
apercebido. Foi a última vez que vi o Guia. Presumo o destino que lhe terá sido
reservado. Ainda andámos mais um dia na mata. Este Furriel suicidou-se mais
tarde com um tiro na cabeça.
Nessa noite,
no acampamento, ouviu-se uma rajada de metralhadora. A sentinela disse não ter
conhecido quem dele se aproximava: era o Capitão. Viemos, finalmente, embora
daquele Inferno e regressámos ao Grafanil, nossa base em Luanda.
Esta insólita
situação julgo ser única e sui generis
na Guerra do Ultramar pois nunca ouvi relato semelhante de algum Camarada, nem
à época nem posteriormente.
Soube mais
tarde que "O Bando", na viagem de regresso à então Metrópole, cometeu
intoleráveis desmandos no navio e que estiveram para ser desembarcados na Guiné.
Desconheço as consequências de tal comportamento mas, com toda a certeza,
deverá ter sido feito um inquérito rigoroso e alguns terão ido mesmo parar à
Prisão, atendendo a que a Disciplina Militar obrigatoriamente é, e terá que
ser, implacável com estas atitudes.
Anos mais
tarde, encontrei um Soldado daquela Companhia que me contou a história da
viagem de regresso, das cenas lamentáveis ocorridas no navio, do suicídio do
tal Furriel e que tentava esquecer o que se tinha passado durante aqueles anos
de juventude em Angola. Não o voltei a ver de novo, mas sei que se chamava
Manuel e que era de Baião.
Sérgio Lopes
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