Ao
dar volta ao meu Espólio Militar que ainda faz parte da nossa comissão em Angola
fui encontrar uns livros que pertenciam à primeira viatura Berliet que recebi
em Luanda e que com ela fiz o meu batismo de Berliet-Tramagal e logo para a
deslocação da nossa Companhia para as Terras-do-Fim-do-Mundo (Coutada do
Mucusso), cerca de 2.500 Kms.
Começo
por recordar a capa de um dos livros onde está escrito por mim naquela época a
matricula MX-43-02 cujas letras e números nunca esqueci, tal como a que levei
para o Luso, sem 3ª e 6ª velocidades, que saltavam, e que tinha a matricula
MX-03-65.
Depois de abrir vieram as recordações:
Figura Nº 1 do livro - o painel de
instrumentos que tantos e tantos dias era o meu companheiro de viagem do Dirico
para o Calai e vice-versa.
Figura
Nº 2 do mesmo livro - entre outra o
conjunto dos pedais de comando e à esquerda, em baixo, junto ao inversor de
luzes médios-máximos, o abre-garrafas-de-cerveja que, mesmo quentes não
escapavam, depois de abertas e bebidas com muito cuidado e sabedoria
voltavam-se a fechar para que Vagomestre não desconfiasse (o que não acredito),
mas a Nocal tinha algo a nosso favor: as
garrafas não tinham separação entre elas dentro das grades e com o andamento e
salto das viaturas e as cargas e descargas algumas partiam e nós aproveitávamos
e juntavam-se as já bebidas com o corpo
da garrafa partido só ficando a parte da tampa intacta. As viagens entre a
Coutada e o Dirico eram de longas horas e feitas de noite, por vezes o sono
apertava e lá ia uma cervejinha para despertar.
Fotografia
nº 3 - setor da caixa de velocidades.
Caixa
sincronizada com 6 velocidades baixas e 6 velocidades altas para a frente e uma
marcha-atrás alta e uma outra baixa, setor totalmente diferente dos carros dos
nossos dias, setor esse em que muitos condutores sentiam algumas dificuldades
por ser ao contrário e arrancavam em 3ª
velocidade. Raramente era utilizada a 1ª velocidade para esse fim, era tão
encostada à marcha-atrás que quase sempre dava confusão, mesmo nos condutores
mais habituados a estas máquinas, muitas
das vezes ao tentar engrenar a primeira normalmente entrava a marcha-atrás.
Figura
4 - alavanca das altas e baixas:
Era
aqui, em conjunto com o motor, que se encontrava a grande força destas
máquinas, mais para trás, entre os bancos, o travão de mão, as alavancas de
tração às 4 rodas e o comando do guincho (as que o tinham), e que não vem
mencionado neste manual. Na figura 1 está ainda mencionado com o nº 13 o
bloqueio elétrico do diferencial.
Figura
7 - a direção;
Depósito
do óleo hidráulico da pequena servo-bomba de direção acionada por uma pequena
correia.
Veio-me
então à memória um caso passado por volta de 1976/77, já, claro, na vida civil,
trabalhava eu na empresa Francisco Batista Russo & Irmão SARL (posteriormente
passou a designar-se RI) onde exercia as funções de 1º Caixeiro de Peças das marcas
MAN e Saviém (hoje Renault), surge na Av. Marechal Gomes da Costa, que vai da
Rotunda do Relógio para o hoje Parque das Nações - esta Avenida tinha uma faixa
central, tipo passeio-central em que os funcionários de quase todas as empresas
aí instaladas aproveitavam para estacionar as suas viaturas em espinha e onde o
meu BMW 1600 também se encontrava estacionado naquele dia -, surge então uma
Berliet-Tramagal desgovernada e que, quase em frente á Firma RI, apanha a
berma do passeio e bate em 4 viaturas de companheiros meus. Felizmente que o
meu carro estava um pouco mais acima e não sofreu nada. O Opel pertencente ao
Chefe da Secção de Máquinas do RI, e com a esposa lá dentro, foi abalroado de
traseira pela Berliet, a senhora ficou em pânico ao ver aquele monstro em cima
da traseira do carro. Como a secção de peças dava para a rua saí e fui ver o
que se passava. Vi então o condutor a chorar e dizendo que lhe faltava uma
semana para passar à “peluda”. Ora a minha reação não se fez esperar, mesmo não
tendo nada a ver com o caso, mas que, com a minha experiência naquelas viaturas,
peço para o condutor abrir o capot e disse para levar o chefe de viatura e mais
os outros camaradas e que fossem ver os estragos causados nas outras viaturas
civis. Subo à frente da Berlit e, com um pequeno canivete que tinha no bolso,
corto a pequena correia e meto-a na algibeira, chamo o condutor e transmito-lhe
que a viatura está sem direção-assistida e que sem a mesma não era fácil
segurar a viatura se ela apanhasse uma pedra ou mesmo o passeio, não lhe
informando que fui eu que a cortei (a correia) e recomendei que afirmasse
sempre que ficou sem direção, embora o chefe de viatura dizia que o condutor
vinha na brincadeira e eu apressei-me dizendo-lhe que se a correia não partisse
talvez nada tivesse acontecido. Surgiram então os superiores a fazerem o respetivo
auto e fui chamado para testemunhar em como a viatura não tinha direção e foi-me
feita a pergunta: “como é que o senhor sabia?” Respondi que andei com estas
viaturas cerca de 24 meses em Angola e tive uma experiência similar ao ser
rebocado dentro do Campo Militar do Grafanil. Éramos dois condutores ao volante e era
difícil manobrar a direção. No entanto insistiam que a correia tinha que estar algures
nas proximidades. De facto não a encontraram, nem podiam encontrar, por a mesma
estar bem guardada dentro do meu cacifo da roupa. Entretanto os autos foram
concluídos, as viaturas civis foram reparadas, mas, passados uns meses, estava
eu no meu posto de trabalho e entra um individuo, que não reconheci de imediato,
e espera pela sua vez de ser atendido e quando o meu colega pergunta "quem está
a seguir?" o rapaz responde que queria ser atendido por mim. Olho então e
reconheço o ex-militar. Ele olhou para mim, sorriu com um sorriso amarelo, como
diz o povo, acabo de atender o meu cliente e dirijo-me então ao rapaz que,
quase a chorar, me dá um abraço e diz: “o senhor salvou a minha vida ao dizer
que a viatura não tinha direção”. Foi então que fui ao cacifo e trago a
respetiva correia cortada e digo-lhe que não tinha nada ficado sem direção mas
sim que eu a tinha cortado e com a falta daquela pequena correia a viatura
ficaria sem direção. Ele responde que foi informado pelos mecânicos da unidade
que foi uma sorte a correia ter partido, se não fosse isso tinha que pagar a reparação
das viaturas civis e o estrago da Berliet. O homem não se fez rogado, puxa duma
nota não sei de quanto e fez questão de ma entregar, o que não aceitei. Combinámos
então almoçar, pois era quase horas de almoço, e isso, sim, aceitava, para
falarmos à vontade sobre o caso.
Falei
com o meu chefe de então e disse-lhe que certamente chegava um pouco mais tarde.
Responde “Boavista (porque também era assim conhecido no RI), vai à vontade,
metes a tarde que nós resolvemos a tua falta, sais, picas o cartão e metes na
minha secretária, eu trato do resto”. Saímos, fomos almoçar à Tasca do Zé Russo,
que ficava logo por trás do RI e onde se comia e bebia bem. Resultado: uma
tarde de conversas sobre a minha vida militar em Angola ao volante daquelas
viaturas e ele a contar o passado dele na tropa e na vida civil, foi uma tarde
com muita comida e bebida e algumas lágrimas de ambos, especialmente na
despedida, com aquele abraço que durou alguns minutos porque ele iria emigrar
para a Alemanha. Daí para cá não mais encontrei esse amigo, se assim posso
dizer. Não sei se me procurou porque em fevereiro de 1986 saí da firma RI e
passado uns dez anos a empresa fechou.
Mário Boavista