Logo à chegada à Coutada de
Mucusso sinto-me doente, com febre alta, suores frios e dores abdominais. O
médico, Dr. Eduardo Ribeiro da Cunha (hoje um conhecido
Ortopedista/Traumatologista na zona de Carcavelos), que nos acompanhou na
viagem e que connosco ficou algum tempo, pouco – foi substituído por outro
médico também chamado Cunha, mas Xavier -, mostrou ali a sua competência
profissional pois fez de imediato o diagnóstico correto, felizmente para mim: -
“Oh Mota, oh pá, estás com a Febre Tifoide,
talvez apanhada na água do Rio Cuito”, disse. Fiquei estarrecido. Febre
tifóide aqui no cu do mundo, vou lerpar, pensei, provavelmente
influenciado pela morte da minha mãe com essa doença quando eu tinha apenas 3
meses de idade. Mas, com medicação certa e eficaz, e o Mineiro sempre por perto,
rapidamente recuperei e me pus novo.
Como a área sob a nossa
responsabilidade era de muitas centenas de quilómetros quadrados, recebemos, entretanto,
como reforço, um Grupo de Combate da Companhia 2504 do nosso Batalhão, que
seguiu em Destacamento para o Luengue, a cerca duma centena de quilómetros, a
norte. Para o Dirico e Calai, a sul, tinha já marchado um outro Destacamento, ao
nível de Secção, que se desdobrou por estas duas localidades, a fim de receber
os bidões de Combustível fornecidos pelos “nossos primos”, que era o sangue das
nossas viaturas.
Em regime de quadrícula estava
colocado um Pelotão próximo ao denominado Bico da Luiana (Faixa do Caprivi), do
Quartel de Sá da Bandeira, cuja situação
era um pouco bizarra: administrativamente eles dependiam da sua Unidade (Sá da
Bandeira), operacionalmente estavam sob a alçada da nossa Companhia e
disciplinarmente sob a responsabilidade do Comando de Setor. O Relatório Diário
de Ocorrências, designado militarmente por Sitrep
(sigla OTAN, em inglês, designativa de Situation
Report) era remetido para nós via rádio.
Através de um Cessna carcamanho, éramos abastecidos, duas
vezes por semana, de hortaliça mais ou menos fresca e o sempre ambicionado CORREIO,
nosso elo de ligação daqueles Cus de
Judas ao mundo civilizado. Conheces o Os
Cus de Judas, de Lobo Antunes? Ele
esteve também nas Terras-do-Fim-do-Mundo, como médico, em N’Riquinha, junto à
fronteira com a Zâmbia (ex-Rodésia do Norte), e escreveu esse livro em alusão a
estas paragens.
Inicialmente o Cessna aterrava na
que começou posteriormente a ser chamada Pista Velha, isto é, uma pequena
abertura de terreno razoavelmente duro onde o avião avançava aos solavancos. Como
os pilotos, que se revezavam sucessivamente, só falavam inglês, foi-me
atribuída, pelo Capitão Santana, a tarefa de com eles me articular, uma vez que
dominava esse idioma. Quando ouvíamos o roncar do avião ao longe, de imediato
reunia o pessoal, que prontamente se disponibilizava voluntariamente para fazer
a necessária segurança, até pela ânsia do bendito Correio a chegar. O “pássaro”
dava uma volta sobre o Aquartelamento, em voo rasante, como sinal, mas o
dispositivo adequado estava já devidamente montado na pista. Numa das vezes,
chegados nós ao ponto de aterragem, o Cessna já se encontrava imobilizado no
chão. Alertei o piloto que era arriscado e temerário da sua parte. Nunca se
sabia onde o IN espreitava e poderia tirar partido dessa ousadia imprudente.
Agradeceu o aviso. Imagine-se o seu aprisionamento pelo IN, fardado com
camuflado sul-africano, e as repercussões internacionais que isso acarretaria,
pois o Inimigo não deixaria de explorar esse trunfo de evidência da presença de
forças estrangeiras em território angolano, que Portugal sempre negava, para
além da destruição do avião, que obviamente levaria com uma bazucada em cima,
pois não teriam tempo de o desfazer com explosivos, até porque os reservariam
para as minas.
Entretanto chegou o pessoal civil
da Tecnil (empresa de construções angolana), chefiado pelo amigo Júlio das
“amargosas” – nome como ele designava as cervejas (Cuca e Nocal). E deu-se
início à construção da nova pista para aviões de pequeno e médio porte,
construída exatamente no enfiamento do ponto alto do Aquartelamento, do lado
oposto à chana, razão por que foi desmatada uma área razoável que nos permitiu
uma visão de defesa mais consistente. Era precisamente em cada um dos extremos
da linha de separação que tínhamos montadas as Bredas (metralhadoras pesadas).
Com exceção de duas operações na
zona de Mavinga feitas pela nossa gente, onde houve recontros diretos com o IN,
e duma outra helitransportada nas imediações da Coutada, e de ainda várias na
área periférica alargada do Aquartelamento mas efetivadas pelos Flechas
(bosquímanos, totais conhecedores deste terreno e exímios na arte de pisteiros)
que se encontravam sob a alçada da PIDE/DGS, as ações praticadas pela Companhia
eram de mero patrulhamento rotineiro, ora nas deslocações ao Dirico para
reabastecimento de Combustível ora nas surtidas à caça para satisfação
alimentar. Naquelas paragens havia todo o tipo de animais, a maioria de grande
porte, jamais vistos por mim fora dum jardim-zoológico: elefantes, girafas,
hipopótamos, leões, leopardos, hienas, chitas, jacarés, avestruzes,
rinocerontes, búfalos em manadas de centenas de unidades, gazelas, palancas,
gnus (boi-cavalo), javalis, cabras-de-mato, coelhos, enfim, todo um manancial
de bicharada que era um regalo de encher o olho, naquela imensidão de chanas.
Chatos eram os mabecos (cães de mato) que, em matilha, se atiravam contra os
Unimogues na esperança de abocanhar a perna de um incauto. Era fácil resolver o
problema: abatia-se um e todos os restantes, com o cheiro do sangue,
devoravam-no em segundos. Certa vez, o Jorge, loirinho de Matosinhos, numa das
deslocações ao Dirico, desceu da viatura para tentar abater uma peça de caça que
estava perto da picada e, de repente, aparece-lhe um leão. O condutor, sem se
ter apercebido da presença do bicharoco, acelerou para outra posição no terreno
e então vê-se o Jorge a correr atrás do Unimogue aos berros de “pára, pára!”. E
o leão a apreciar a cena … deve-se ter fartado de rir à sua maneira!
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Cessna, já na Pista Nova |
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Hélis alinhados junto ao arame |
Nas operações circundantes, os
Helicópteros Alouette III dos “nossos primos” ficavam alinhados na nova pista.
Nos intervalos operacionais, aproveitávamos para realizar jogos de futebol, em
campo improvisado junto ao arame. Eu próprio entrei nessas competições. Posso
dizer, portanto, dum modo jocoso, que já competi em jogos de futebol
internacionais. O nosso Guarda-Redes, o Freitas, tinha sido jogador do Sandim
nessa função, portanto, a coisa era perfeita. No fim acabava tudo na cerveja,
ganhasse quem ganhasse.
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Jogo internacional de “seleções militares” |
Aquela zona era de atuação do MPLA, mas a sua função era única e
simplesmente fornecer apoio logístico e operacional à SWAPO, facilitando a sua
passagem para o Sudoeste Africano, razão por que os seus guerrilheiros (ditos
“turras”) furtavam-se ao contacto connosco, mas nunca deixaram de tentar
controlar os nossos movimentos, como posteriormente se veio a constatar aquando
da chegada dos maçaricos que nos
vieram render.
Carlos Jorge Mota