Zarpámos
do Funchal cerca de meia-noite. Passámos, portanto, a parte diurna desse dia na
Ilha pois havíamos atracado logo de manhãzinha. Vejo o navio a começar a
navegar com a proa apontada para um pouco antes do bico do monte frente à
cidade. Fico assustado. Será que vamos bater ali? Questiono um tripulante
perante o meu alarme. Ele, tranquilamente, respondeu-me: “É que o navio está apontado para ali mas, com a corrente, ele vai
navegando de lado e iremos passar bastante para lá do morro”. Fiquei a
saber naquela altura que, tal como nos aviões, que sofrem a influência dos
ventos (mas aí eu tinha conhecimento), há também, na navegação marítima, uma
diferença entre Rota e Rumo. Entrámos no alto-mar, azimute de Lisboa na bússola,
com viagem prevista para cerca de 36 horas. Durmo tranquilo, ainda teríamos
mais duas noites e um dia de navegação. Como de manhã estava um tempo ótimo,
aproveito para me refastelar um pouco e gozar os últimos momentos do Vera Cruz.
A
última noite foi passada em grande desassossego uma vez que, pela manhã desse
dia 1 de julho de 1971, atingiríamos o Tejo. Mas, para nosso espanto, o navio
parou no meio duma neblina cerradíssima, que nada víamos num raio de 20 metros.
Soa o seu apito estridente e responde um outro mais fraquinho: era o da Lancha
dos Pilotos. Estávamos junto ao Farol do Bugio, viemos depois a perceber quando
o sol clareou, dissipado o nevoeiro. Sobe para bordo o Piloto do Porto da Barra
de Lisboa … e o navio começa a subir o Tejo, devagarinho. Passa sob a Ponte, então chamada de Salazar, agora de 25 de Abril, e começa-se a vislumbrar uma multidão no Cais de
Alcântara e não no da Rocha de Conde de Óbidos, donde tínhamos partido em 1969, a
acenar, com lenços, chapéus e tudo que dava para abanar. Acostámos, em manobra
lenta e vagarosa, e alguma multidão entra em transe. Gritos de alegria vindos
de fora, acenos feitos de dentro. Minutos especiais em que disciplina rígida
tem que imperar, sob pena de perca do controlo da situação. A compreensível
ânsia é grande mas tem haver rigor no critério de saída. Chega a minha vez.
Desço o portaló e encontro logo de imediato, de Serviço de Prevenção de
Enfermagem ao navio, o que viria a ser o meu cunhado António, mais tarde
mobilizado para Moçambique. É o meu primeiro abraço. Rapidamente descubro os
meus familiares e a minha namorada. Ficará perene na minha memória esse
esperado momento do reencontro ansiado.
“Vamos embora, tenho ali o
carro!”, diz o meu cunhado Amorim (já falecido). “Não posso. Temos que ir enquadrar o pessoal
até ao R.I. 2, em Abrantes (nossa Unidade Mobilizadora) para fazer o chamado espólio do fardamento,
tirar uma Radiografia Pulmonar e receber a Licença Registada por 30 dias e
ainda aguardar pela bagagem de porão!”. Assim se procedeu, mas eles, os
meus familiares, levaram o carro para Abrantes para me aguardar. Chegámos à
Unidade, transportados em Camiões Militares desde a Estação de Abrantes, onde
findou a sua marcha o Comboio Especial. Portanto, missão cumprida. Nós,
Milicianos, não fizemos espólio. O fardamento era nosso, pago por nós, com
dinheiro abonado pelo Exército mas descontado posteriormente no soldo.
É-me
feita uma Radiografia Pulmonar e é-me entregue a Licença Registada por 30 dias,
período durante o qual nos encontrávamos ainda no Ativo. Findo esse prazo,
entraríamos na chamada Disponibilidade.
Concluo logo que será melhor voltar ao RI 2 mais tarde para levantar a bagagem
de porão. Entro no carro e, após umas horas de compreensível conversa
emocionada, chego, finalmente, à minha rica cidade do Porto.
Adeus às Armas! Fim da Guerra! Mas será que foi mesmo
o fim da Guerra? NÃO, NÃO FOI! Constatamos todos nós, Combatentes, isso, hoje.
Ela somente hibernou … as nossas cabeças apenas entraram num período de nojo …
Sim, porque a Guerra é mesmo um nojo!…
Carlos Jorge Mota
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